POR ABEL MORAIS www.alamedadigital.com.pt
COM A DEVIDA VÉNIA.
Coreia do Norte – o regime que incomoda os seus aliados
por Abel Morais
A Coreia do Norte regressa às negociações sobre o seu programa nuclear. O facto não é de finais de Outubro de 2006. É de Agosto de 2003, quando Pyongyang aceita discutir a questão nuclear à mesma mesa com a Coreia do Sul, a China, a Rússia, o Japão e os Estados Unidos, negociações que viria, naturalmente, a abandonar, em 2005.
Com aquele anúncio terminava um período de cerca de cinco anos em que os norte-coreanos tinham procedido à habitual mistura de retórica agressiva com sugestões de negociações, em que participariam desde que obtidas algumas cedências prévias dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão.
No último dia de Outubro deste ano, a notícia repetiu-se. A Coreia do Norte regressa, mais uma vez, às negociações sobre o programa nuclear. Desta vez, aparentemente, sem ter obtido algumas cedências e apoios generosos em bens alimentares para uma população refém de um dos regimes mais repressivos da actualidade.
Será que a estratégia de Pyongyang se encaminha para um beco sem saída? Ou será que a Coreia do Norte começa a custar mais aos seus aliados – China e Rússia – do que as vantagens e a capacidade de manobra que lhes proporciona?
Com o ensaio nuclear de reduzida dimensão realizado a 9 de Outubro, Pyongyang procurava o mesmo resultado de sempre: com a ameaça de um cataclismo militar na península coreana obteria, em troca de se sentar à mesa das negociações, mais um pacote de ajuda – em energia, alimentos e materiais essenciais ao funcionamento de uma economia totalmente hipotecada às necessidades de defesa e que força a um estado de indigência total a população do país.
Mas, por uma vez, este mecanismo de chantagem, usado com sucesso várias vezes no passado, não produziu os efeitos esperados. O cenário de uma Coreia do Norte “potência nuclear” é inaceitável, não só para os EUA e Japão, mas principalmente para a China e para a Rússia. Como parece evidente pelo rápido acordo conseguido entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – EUA, Rússia, Grã-Bretanha, França e China – para a aplicação de sanções a Pyongyang.
A questão da preservação do regime, que justifica toda a actuação da Coreia do Norte, sofreu um revés com o ensaio nuclear de Outubro. E a chantagem militar de uma acção retaliatória sobre a Coreia do Sul – por muito real que o seja – não é suficiente para impedir o indispensável endurecimento de posições ao tratar com um dos derradeiros fósseis estalinistas do mundo.
A sobrevivência do regime depende, em absoluto, da sua utilidade para Pequim e Moscovo. A Coreia do Norte é um país artificial, herdado da lógica da Guerra Fria, sem qualquer autonomia ou razão de existência, além de ser um factor geoestratégico que complica os equilíbrios e os interesses em conflito na região.
A divisão da península coreana é vista com bons olhos em Pequim e Moscovo, mas, ainda que por outras razões, também em Tóquio. Nas duas primeiras capitais, a Coreia do Norte funciona como um Estado-tampão que reduz e condiciona o espaço de influência dos EUA na península e, em particular, na vizinhança imediata das fronteiras da China e da Rússia; permite também a estes Estados e, em particular, à China, obrigar os EUA a não tomarem nenhuma iniciativa decisiva neste problema, sem uma consulta prévia a qualquer dos dois Estados, atendendo também ao seu lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Ainda para Pequim e Moscovo, a Coreia do Norte funciona como um útil obstáculo à reunificação da península coreana, com todas as alterações geoestratégicas, políticas e económicas que daí resultariam. Uma Coreia reunificada seria mais um actor de primeiro plano na região. Uma situação que não pode deixar de incomodar também o Japão.
Para Tóquio, a reunificação da península coreana, ainda que reunindo nas mesmas fronteiras a 10.ª economia mundial (Coreia do Sul) e um Estado de economia primitiva (Coreia do Norte) não deixaria de criar, a prazo, um novo pólo de afirmação económica e tecnológica, potencialmente concorrencial com a economia nipónica. No plano geoestratégico, uma Coreia reunificada poderia não ser um adversário de Tóquio, mas não deixaria de ter as suas prioridades e autonomia numa conjuntura em que o próprio papel dos EUA – principal aliado do Japão – teria de ser redefinido. A começar pela presença militar na península coreana.
A ameaça militar norte-coreana é a principal razão do forte dispositivo americano na Coreia do Sul. Mas a ameaça norte-coreana é, numa certa perspectiva, um tigre de papel.
É certo que Pyongyang tem colocado ao alcance de Seul – capital da Coreia do Sul, um dos centros económicos do país, com uma população de 20 milhões – mais de dez mil peças de artilharia e mísseis, estando o essencial das suas forças colocado perto da zona desmilitarizada entre as duas Coreias. Possui ainda alguns mísseis capazes de atingir o Japão.
Mas, tirando o factor surpresa e o choque certo de um primeiro ataque, o regime de Kim Jong-il sabe que não tem mais nada, a não ser os seus aliados russos e chineses que, hoje, muito dificilmente, lançariam os seus exércitos, como Mao fez na Guerra da Coreia (1950-1953), ou a sua aviação, como Estaline ordenou na mesma época.
Não sendo possível um efeito devastador num primeiro ataque, a resposta americano-sul-coreana seria, ela sim, devastadora, e poderia fazer xeque-mate ao regime. O que Pequim e Moscovo sabem. Como sabem que um conflito militar teria custos imprevisíveis, a Norte e a Sul da zona desmilitarizada, que não deixariam de ter repercussões quer na China, quer na Rússia: vagas de emigrantes, ondas de choque económicas, efeitos de radiação devidos à detonação de eventuais engenhos nucleares.
Não é por acaso que foi rápido o acordo para uma resolução do Conselho de Segurança nesta matéria. Rússia e China têm fronteiras comuns com a Coreia do Norte, são o seu principal aliado e esta seu instrumento na geopolítica regional. Moscovo e Pequim querem que esta situação não sofra alterações sensíveis. Sabem também que a Coreia do Norte necessita desesperadamente de divisas e que será substancial a tentação de traficar com outros Estados ou organizações o pouco ou muito domínio que tenha do processo nuclear e da tecnologia militar correspondente. O que é tão perigoso para Pequim e Moscovo, como é para Washington. Por isso, o sinal dado a Pyongyang. Que, ao realizar o teste de 9 de Outubro, demonstrou ser também uma ameaça para os seus aliados.
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